sábado, fevereiro 18, 2012

História de Vida de Alfredo Machado da Costa e Emília Gaspar Gonçalves Queirós da Costa na 2ª metade do séc. XX






Emília Gaspar Gonçalves Queirós da Costa




Alfredo Machado da Costa
Assis Gaspar Machado Monteiro (AGMM):Mãe! Gostaria muito que me falasse da sua história de vida, das suas origens familiares, da sua formação educacional do tempo em que conheceu o pai, para desta forma ficar a conhecer melhor a vossa trajetória de vida.
Emília Gaspar Gonçalves Queirós da Costa (EGGQC): Nem sei por onde começar, mas começo por dizer que os meus pais residiam numa aldeia que se chamava Macieira pertencia à Freguesia de Limões, concelho de Ribeira de Pena, a minha mãe chamava-se Teresa Gomes Gaspar, nasceu em 30 de Abril de 1925 e era natural de outro município, Mondim de Basto. Meu pai, Manuel Joaquim Gonçalves Queirós, não me lembro da data de nascimento, era de Macieira, onde casou e passou a viver com a minha mãe. Meus pais eram pequenos agricultores, viviam sobretudo da agricultura e da pastorícia. A minha mãe era doméstica, tratava da casa, dos filhos e dedicava-se à atividade da tecelagem. Os materiais utilizados, na tecelagem, eram produzidos em casa. Cultivávamos o linho e fazíamos toda a sua transformação, para fazer toalhas, colchas que depois vendíamos para fora, Lisboa, Porto e, às vezes, para estrangeiro na altura da emigração.
 Da pastorícia, fazíamos o aproveitamento da lã que transformada dava para fazer as meias, os cobertores, as cobertas, a minha mãe costumava tingir com cores para ficarem mais bonitas. Eu nasci em Macieira, em casa, a parteira que assistiu ao parto, chamava-se D. Rosa, ela era a parteira de serviço na aldeia, não havia hospitais pois a nossa aldeia era muito isolada, não tinha acesso terrestre a carros, só havia estrada a 5 Km.
 Eu andei na escola primária da aldeia onde completei a terceira classe, tendo que abandonar logo, tinha que ajudar em casa e não havia dinheiro para estudar. Eu tinha mais 8 irmãos, três rapazes e 5 raparigas, uma das meninas faleceu com meningite aos 18 meses de idade - deixou de ver, nem sabíamos muito bem o que se passava.
 A vida dos meus pais foi muito difícil, não havia ajudas de parte alguma, vivíamos o regime de Salazar, como éramos muitos filhos, mais difícil era, havia grandes necessidades mesmo de alguns bens essenciais, logo desde pequeninos começávamos a ajudar os pais na lida da lavoura, do que dava a terra não havia fome, mas não havia mimos como agora, tínhamos pouco dinheiro e não havia onde comprar.
 A minha infância foi muito dura e difícil, pois com 12 anos de idade fiquei órfã de pai.
 O meu pai foi para Lisboa para melhorar as nossas vidas e acabou por falecer vítima de uma pneumonia e poucos cuidados. Estava lá sozinho, não tinha seguro, trabalhava clandestinamente, foi terrível, não tínhamos condições económicas para o trazer para a aldeia e acabou por ficar em Lisboa, sinto um grande desgosto principalmente pela família, pois podiam ter ajudado e eu podia ter o meu pai perto de nós, assim, nem pude prestar-lhe uma última homenagem, só a minha mãe foi lá.
 Eu, como era a mais velha, recaiu sobre mim muito trabalho e responsabilidade, tinha que ajudar a minha mãe, e a partir desta altura as nossas vidas ainda se complicaram mais. Passamos muitas dificuldades a todos os níveis principalmente ao nível económico, foi muito difícil, tivemos uma vida marcada pela dureza e miséria, éramos muitos irmãos, não havia ajudas do estado como há hoje, durante a minha juventude, para ganhar algum dinheiro ia trabalhar para a floresta, pois perto da minha aldeia estava-se a fazer a reposição da floresta e requisitavam pessoas para trabalhar, pagavam 5 tostões ao dia (trabalhávamos de sol a sol), durante o ano todo, era uma forma de ganharmos algum dinheiro para fazer face a outras despesas, mesmo assim passava-se muitas necessidades, era uma vida muito dura, as condições em que vivíamos eram péssimas, não havia água, nem luz, utilizávamos o petróleo para ver ou velas, a lenha para cozinhar “miséria absoluta”.
AGMM: Tem alguma fotografia de quando era jovem? Pode mostrar-ma?
EGQGC: Tenho uma, mas já era praticamente adulta, pois naquele tempo quem tirava fotografias! Não havia máquinas, nem dinheiro, só começou a haver fotografias quando o teu pai foi para Alemanha, ele comprou logo uma máquina.
AGMM: Quando conheceu o pai? O que sabe das suas origens?
EGQGC: Conheci o teu pai na minha mocidade, pois ele vivia numa aldeia vizinha da nossa, chamava-se, Limões. O teu pai chamava-se Alfredo Machado da Costa, nasceu em 25 de Junho de 1940 nessa aldeia, pertencia ao concelho de Ribeira de Pena, os teus avós paternos chamavam-se Maria das Dores Gonçalves Geiroto e Alfredo Machado da Costa, o teu pai tinha o nome igualzinho ao seu pai, ele tinha mais 5 irmãos, duas raparigas e três rapazes, tinham a alcunha “Geiroto” talvez porque a tua avó tinha no nome Geiroto. As aldeias onde morávamos distavam apenas 5 quilómetros, costumávamos de nos juntar nas pequenas festas da aldeia, nas novenas, na missa dominical na igreja, nas romarias e nos trabalhos de campo, quando eram trabalhos grandes como as “cegadas e as malhadas”.
AGMM: Tem alguma fotografia do pai enquanto jovem? Com a família dele? Sabe de onde eram os avós paternos?
EGGQC: Sim, tenho uma fotografia onde estão os pais dele e duas irmãs. A tua avó era da minha aldeia, Macieira, era já uma casa de Lavoura de agricultores abastados, o teu avô era da Povoa, pertencia a Ribeira de Pena. Casaram-se e vieram viver para Macieira onde nasceram os primeiros quatro filhos. Viviam da agricultura, mas o teu avô era um homem ambicioso e vendeu tudo em Macieira para ir para Limões, onde comprou uma grande lavoura, lá nasceram mais dois filhos, teu pai e uma irmã. Em Limões embora sendo apenas a 5 quilómetros de distância já havia melhores condições de vida, a nível da agricultura havia a produção de vinho, fruta, era um clima mais ameno e dava-se lá tudo. Daquilo que dava a terra era uma casa “farta” não faltava nada, dedicavam-se também à pecuária criação de gado bovino.
AGMM: Fale-me um pouco de si, onde nasceu, o lugar da residência atual coincide com o de nascimento?
EGGQC: Eu nasci a 31 de Março de 1948, em Macieira, pelas mãos da D. Rosa, a parteira e amiga da família. Fiz apenas a terceira classe, pois não havia possibilidades de estudar. Segui a profissão da minha mãe, porque não havia meios para aprender outra e como fiquei órfã de pai muito cedo, tive que ajudar a criar os meus irmãos. A minha profissão foi imposta pelas circunstâncias da vida, foram anos de muita luta e muita necessidade a todos os níveis.
 Aos 22 anos de idade, mudei de vida, tive a possibilidade de emigrar para Alemanha, porque as condições em que vivíamos no nosso país eram miseráveis, era uma ditadura, e perante esta oportunidade não olhei para o lado, lembro com muito pesar, pois deixava a minha família para trás, em busca do desconhecido, a dificuldade da língua, tudo difícil, mas duma coisa tinha a certeza, eu queria mudar a minha vida, e não queria viver daquele modo para sempre “fui à luta”.
AGMM: Quer contar-me como foi esse percurso da sua vida? O pai! Já fazia parte desse projeto? Ou ainda não?
EGGQC: Eu conheci o teu pai antes de emigrar, em 1970, iniciamos o nosso namoro, tenho duas fotos desse tempo que te posso mostrar. O teu pai já estava em Alemanha, emigrou mais cedo. Eu fui para Alemanha com uma irmã e sob a proteção de um tio que nos deu guarida e todo o apoio no início, que por coincidência mais tarde veio a ser meu cunhado, ou seja é irmão do teu pai, graças a ele pudemos apresentar uma morada, doutro modo não assinávamos o contrato de trabalho, isso era a condicionante principal. Sem casa, não era possível. Antes de irmos, fomos obrigadas a ir a uma junta médica, pois se fossemos portadoras de alguma doença já não embarcávamos.
 Após a chegada a Alemanha, efetuei o registo oficial no consulado Português em 23 de Abril de 1970, como podes ver no registo escrito, na cidade de Frankfurt.
 No dia útil seguinte, fui trabalhar para uma empresa de limpeza, num grande hospital em Langen, onde exerci funções durante 16 anos, ou seja, até ao meu regresso a Portugal. Trabalhei sempre para a mesma empresa, nela fui muito bem acolhida, sentia-me no meio de uma família. Em Novembro de 1970, teu pai iniciou trabalho numa empresa de construção, e em 25 de Abril de 1971, contraímos matrimónio na igreja de Niederrad em Alemanha, fizemos um pequeno convívio só para as pessoas mais chegadas, eram cerca de 20 pessoas.
 Após o casamento ficamos a residir com um irmão do teu pai durante alguns meses, depois ele regressa a Portugal e nós ficamos com a casa. As maiores dificuldades que encontrámos nesse país foram a língua, era tão triste querermos falar algo ou entender e, não perceber nada, mas à medida que o tempo passava, as coisas foram melhorando, e o nosso grande objetivo era trabalhar muito para ganhar dinheiro para vir para Portugal, fazer uma casa. Teu pai, rapidamente mudou de trabalho e veio para a mesma empresa onde eu estava. Teve a função de motorista e encarregado (transportava os trabalhadores da empresa), teve sempre carro da firma, que trazia para casa e ocupou um cargo de chefe de equipa, tendo um grupo de trabalho ao seu cuidado.
  No dia 24 de Agosto de 1972, um dos dias mais felizes da minha vida, fui mãe pela primeira vez, nasceste tu, numa clínica perto da nossa casa, o parto foi muito difícil, teve que ser cesariana, a seguir ao parto fiquei vários dias em coma, pois durante a gravidez tive vários problemas de saúde e contrai uma doença crónica que ainda hoje, passados 38 anos me persegue “Bronquite Asmática”. Do parto fiquei internada 3 semanas, foi um momento difícil, teu pai chegou a ser confrontado pelos médicos com a questão” Salvar a criança ou a mãe?” teve que assinar um termo de responsabilidade, e graças a Deus, salvámo-nos as duas, foi um milagre.
 Fizemos o teu batizado, na igreja de Niederrad, onde casamos, tinhas cerca de dois meses de idade, o padre chamava-se Xavier.
 Entretanto era muito difícil arranjar creche, para ficares, e tivemos que tomar a decisão mais difícil das nossas vidas, ou optávamos por abandonar Alemanha e regressar, ou trazíamos a menina a Portugal, ou deixava de trabalhar, o que era impossível nesta fase, não tínhamos rendimentos para isso, estávamos nos princípios da vida. Mas com o objetivo de conseguirmos uma vida melhor, fazer uma casa, dar um melhor futuro aos filhos, trouxe-te a Portugal com 5 meses, posso te mostrar uma fotografia que teu pai tirou nesse dia, que ficou marcado nas nossas vidas. Ficaste com a avó Teresa, que ao contrário de criar 9 filhos, criou 10, pois viveste com ela até aos 12 anos de idade, embora com muitas viagens e pequenas férias em Alemanha, viajaste muito de avião.
 Os anos foram passando, tu entraste para a escola, a mesma que eu frequentei, e ao atingir os 12 anos decidimos que estava na hora de regressar para ao pé da filha, por sua vez o pai sempre ambicionou fazer uma casa perto do hospital e da escola, deixando as origens para trás, escolhemos a cidade de Vila Real para vivermos, onde permanecemos até à presente data. Compramos uma casa antiga, reconstruímo-la, começando do zero e passo a passo fomos construindo assim o nosso projeto de vida, que infelizmente por obra do destino foi interrompido. Teu pai foi surpreendido por uma doença maldita “Câncer” e em menos de dois meses acabou por falecer.
 Em Agosto de 1985, regressamos definitivamente a Portugal, pois estava na hora de apoiarmos a nossa menina que já ia iniciar o 6º Ano, na escola de Cerva.
AGMM: Arrependeu-se de ter voltado para Portugal?
EGGQC: Considero que não me arrependi de tomar esta decisão, embora tenha plena consciência que o país de onde vinha era muito superior, a todos os níveis, começando pelos salários, jamais, com a formação académica que eu tenho, conseguiria ganhar cá o que ganhava lá. Naquele país, senti que fazia parte de uma família, tenho muitas saudades, fizeram-me uma grande festa de despedida, fui muito bem tratada, só tenho a dizer bem, nessa festa estiveram presentes desde os chefes da firma, ao diretor do hospital. Este entregou-nos um quadro com uma imagem do hospital, para trazermos para Portugal e não esquecermos aquele lugar. As tristezas que tive, foram poucas, deveram-se a situações de trabalho com colegas portugueses.
 Cá, as dificuldades são enormes para quem não tem formação académica, embora ainda hoje noto que o nosso país está muito aquém de outros, tem uma grande caminho para percorrer, e poderei afirmar que nunca chegará lá. As maiores diferenças que senti, foi o nível de vida, lá estávamos habituados a um nível de vida que de forma alguma, poderá competir com este que temos cá.
AGMM: Como comunicava com a família?
EGGQC: Quase sempre por telefone, correspondência era muito raro.
AGMM: Como disse, migrou para a cidade. Achou alguma diferença?
EGGQC: Não, foi bom vir para Vila Real, depois de passar este tempo em Alemanha, se fosse para a minha aldeia, aí sim, iria achar uma grande diferença, assim a mudança foi grande mas não tão brusca.
AGMM: Teve mais filhos? Fale-me deles?
EGGQC: Sim. Depois de estar cá, nasceu um menino, o David Gaspar Machado no dia 13 de Setembro de 1986, que tem agora 24 anos de idade. Fez todo o percurso escolar em Vila Real, completou apenas o 12º Ano não querendo estudar mais. Começou a trabalhar numa empresa de elevadores, há já 3 anos, e nos tempos livres dedica-se à jardinagem, atividade que gosta muito de fazer. O David ainda está solteiro e reside comigo.
 A minha menina, que és tu, estás uma senhora com 38 anos, casada com o rapaz da mesma aldeia “Lugar da Calçada”, tu fizeste todo o percurso escolar em Vila Real, licenciaste-te pela Universidade Católica do Porto na área das Ciências Sociais e Humanas, com muito sacrifício pois trabalhavas e estudavas ao mesmo tempo, foste uma grande lutadora. Agora continuas, e estás a frequentar o Mestrado pela UTAD em Ciências da Cultura. Começaste a tua vida profissional aos 18 anos de idade, com a função de Oficial Administrativa principal numa Associação durante 10 anos, em 2001 iniciaste um novo emprego, no Centro Social Paroquial de Mateus onde te encontras ainda hoje exerceu funções de professora nos primeiros seis anos e agora animadora sociocultural até aos dias de hoje.
AGMM: Já tem netinhos? Quer falar-me um pouco deles?
EGGQC: Claro, os meus netinhos, são os teus filhos, são a minha alegria, a Patrícia com 15 anos frequenta o 10º Ano e quer seguir economia, tem sido uma boa menina, o Diogo com 11 anos de idade frequenta o 5º Ano, é também um grande traquina.
AGMM: Qual é a sua prática religiosa?
 EGGQC: Somos católicos, o teu pai enquanto jovem, fez parte do grupo de jovens ao qual chamavam “Juventude Católica” enquanto estava a residir com os pais dele. Ambos procuramos educar os nossos dois filhos neste caminho da fé cristã, ambos fizeram o percurso catequético até ao Crisma. Tu em Limões e o David cá em Vila Real. Tu continuas a ser um bom exemplo disso, dás o teu contributo à comunidade como catequista na paróquia da Nª Sr.ª da Conceição há já 10 anos.
AGMM: Tem fotografias dos seus filhos quando fizeram as festas religiosas?
EGGQC: Quase nada.
AGMM: Pertence à fábrica da igreja? Foi mordoma de alguma festa?
EGGQC: O teu pai foi mordomo se não me falha a memória em 1976, estávamos em Alemanha e como havia lá muitos emigrantes portugueses, na aldeia era hábito nomear um mordomo em cada país ou cidade onde havia emigrantes ou migrantes, com o objetivo de angariar dinheiro para a festa do S. João, era a romaria anual da aldeia, não tenho qualquer fotografia desse tempo.
AGMM: Tem fotografias do pai quando ele participou nessas festas?
EGGQC: Não, desse tempo não tenho nada, não havia muito dinheiro para comprar as máquinas fotográficas.
Memória do Passado
AGMM: O que recorda de Portugal no período em que nasceu?
EGGQC: Muita miséria, uma vida muito dura, no local onde vivia estávamos muito distantes do que se ia passando, como já disse, não havia luz elétrica, não havia televisão, havia rádio mas só a pilhas, às vezes não havia dinheiro nem tempo para as ir comprar. Para adquirirmos alguns géneros para a alimentação deslocávamo-nos a Cerva, cerca de 15 quilómetros, demorava mais ao menos duas horas a pé, outros produtos mais raros íamos a Ribeira de Pena, já era muito longe e íamos de autocarro. Vivíamos do que dava a terra, era uma grande miséria. Só quando emigrei é que conheci uma vida para além de difícil muito melhor, embora com todas as dificuldades da língua, da adaptação, do conhecimento de uma cultura muito diferente da nossa, uma civilização muito diferente tudo era melhor daquilo que tínhamos, ou seja “não tínhamos nada”.
AGMM: Quer falar-nos do Regime de Salazar - (Estado Novo)?
EGGQC: Do regime de Salazar, recordo-me de não podermos falar aquilo que nos apetecesse contra o governo, embora eu não senti isso na pele, pois éramos pacíficos, estava tudo mal, mas nós não reclamávamos nada. Lembro-me ainda de virem pelas portas, homens do governo obrigar os agricultores a dizerem aquilo que colhiam das suas terras, depois mais tarde voltavam para obrigar os agricultores a vender, recordo-me de o teu pai falar que o pai dele, meu sogro, enterrava nas cortes do animais os cereais para não ser obrigado a vendê-los, pois esses faziam falta para o pão que se comia durante o ano, não se comprava pão algum, era cultivado e depois feito em casa.
AGMM: Acha que havia falta de liberdade? E de oportunidades?
EGGQC: Não havia liberdade, não podíamos dizer nada contra o governo, se o fizéssemos a PIDE andava à escuta e levava as pessoas presas. Oportunidades - zero, principalmente nas aldeias mais isoladas, onde nada chegava e tudo era esquecido, vivíamos na escuridão total, só muito mais tarde depois da revolução é que as coisas começaram a “compor”, e com a emigração esta sim, abriu as portas para as pessoas melhorarem as suas condições de vida, e trouxeram para as aldeias muita riqueza, vários melhoramentos, as casas, as condições de vida.
 Os mais pobres não tinham oportunidades sequer, esses eram encostados completamente. As famílias mais abastadas, já tinham mais poder económico, logo tinham mais oportunidades para colocarem os filhos a estudar, outros até tinham possibilidades económicas, mas, a sua mentalidade era “trabalhar a terra”.
AGMM: Alguma vez foi interrogada pela PIDE?
EGGQC: Nunca, talvez porque vivíamos numa aldeia muito isolada, só sai de lá quando emigrei, e de lá não lembro haver ninguém revolucionário, as pessoas eram pacíficas ou tinham medo e não se pronunciavam.
AGMM: Relativamente ao 25 de Abril de 1974 - Regime democrático?
EGGQC: Quando se deu a Revolução do 25 de Abril eu estava em Alemanha mais o teu pai, acompanhávamos as coisas pelas notícias, mas nesse tempo até a televisão era limitada, havia apenas um canal e uma hora ao sábado que transmitia as notícias de Portugal, se por ventura estivéssemos a trabalhar, não podíamos ver. Telefonávamos também para a família e dessa forma íamos sabendo o que se passava no país.
AGMM: Como emigrou para Alemanha, presenciou algo ainda consequente da 2ª Guerra Mundial?
EGGQC: Quando chegamos a Alemanha, ainda vimos muitos prédios destruídos pela guerra, o país estava ainda em reconstrução, os emigrantes ajudaram muito, tive muitas amigas que viveram esses tempos terríveis, e se o assunto vinha à conversa, rapidamente mudavam, não gostavam de falar dessa página da sua história, era demasiado doloroso. O pai falava que algumas alemãs não permitiam que se fizesse mal aos “ratos”, pois em tempo de guerra eles serviam de alimento a muitas pessoas que passavam meses nas caves, e o que passava por lá eram os “ratinhos”, não viam a luz do dia e nem tinham mantimentos. Falava-se muito pouco, notávamos que as pessoas estavam destroçadas e nem admitiam que se tocasse no assunto.
AGMM: Que acontecimentos políticos, sociais vividos no país a marcaram mais?
EGGQC: O que marcou mais foi o regime autoritário, não podíamos expressar-nos contra o governo, na minha aldeia devido ao isolamento, muitas coisas quando chegávamos a saber já tinham acontecido há muito tempo. Era um tempo de miséria, vida muito dura, quando precisássemos de ir ao médico tínhamos que andar duas horas a pé, ou se fosse mais grave íamos a Vila Pouca de Aguiar andávamos duas horas a pé e depois apanhávamos o autocarro que ainda demorava cerca de uma hora. A maior parte das pessoas quando estavam doentes tratavam-se em casa, à base de produtos naturais, utilizavam várias ervas, havia sempre alguém que conhecia e receitava. Esta aldeia estava isolada a 5 quilómetros pela via terrestre, se acontecesse algo que a pessoa não andasse, era transportado num “carro de bois” ou numa “padiola”. Nesse tempo o Sr. Pe. ia celebrar missa à cavalo, a professora primária ia a pé e depois ficava lá durante todo o período trimestral, enfim minha filha, nem é bom pensar, hoje queixamo-nos mas vivemos muito bem.
AGMM: O poder era exercido pela Igreja? Os padres mandavam nas aldeias?
EGGQC: A igreja tinha muito poder o Sr. Pe. era a pessoa mais importante na aldeia, a seguir era a Prof. Primária e só em terceiro lugar o presidente da Junta de Freguesia.
 Lembro-me que na minha aldeia estiveram dois padres o primeiro o Sr. Pe. Manuel Moutinho e depois o Sr. Pe. Agostinho, o meu percurso de catequese foi orientado pelo Sr. Pe. Manuel. Desse tempo não tenho nenhuma fotografia, mas lembro ter feito a primeira comunhão, a profissão de fé e o crisma na igreja de Limões.
AGMM: Que atividades educativas e culturais dirigia o senhor Padre?
EGGQC: O Sr. Pe. dirigia um grupo que tinha o nome de “Juventude Católica” lembro-me ainda das cruzadas, eu nunca participei em nenhum desses grupos, porque essas atividades eram feitas na paróquia e eu para me deslocar teria que fazer uma hora de caminho a pé para cada lado, mas o teu pai fazia parte do grupo “ Juventude Católica”.
 Na minha freguesia existia também uma Banda de Música, que era solicitada para ir tocar para muitos lugares, ou seja na terra de teu pai, lá estava tudo concentrado, era a Freguesia, às aldeias não chegava nada.
AGMM: Lembra-se das atividades desenvolvidas pela Casa do Povo da sua aldeia?
EGGQC: Na minha aldeia não havia Casa do Povo, mas existia uma Cerva, distava da nossa aldeia 2 horas a pé, promovia atividades, mas eu nunca ia, era impossível a deslocação, e os caminhos eram muito rudes, e depois eu era a mais velha tinha muito trabalho, cuidar dos meus irmãos e ajudar a minha mãe, não havia muito tempo para essas atividades.
AGMM: Os professores eram também pessoas com uma forte influência na comunidade. Como recorda os seus professores primários?
EGGQC: Tenho boas recordações da minha professora, era uma senhora lá da aldeia, ensinava bem, era dedicada, às vezes ficava mais tempo com aqueles que não aprendiam, não se respeitava muito o horário, mas também batia muito a quem aprendesse mal, os nossos pais se nos queixássemos ainda nos batiam mais, enfim era o “oito hoje é o oitenta” os professores não têm autoridade nenhuma.
AGMM: O chefe da família era o dirigente da casa?
EGGQC: O chefe de família era o pai, era a pessoa que tinha que sustentar a casa, tendo a ajudá-lo a esposa. Esta cuidava da casa, dos filhos e apoiava o marido na lavoura, a mulher não tinha os mesmos direitos, quem mandava era o marido, por sua vez a mulher tinha que ser submissa, obedecia sem reclamar não tinha sequer o direito de levantar a voz. Era considerada “um objeto” e grande parte delas levavam porrada dos maridos e ainda os encobriam. Felizmente na minha casa, relativamente a esse assunto não tínhamos esse problema, o meu pai nunca bateu à minha mãe.
AGMM: O marido era fiel à esposa ou não?
EGGQC: Nem sempre, havia de tudo, uns eram fiéis, outros não, mas a esposa aceitava a infidelidade e nem sequer ousava pronunciar uma palavra. Ela fazia isso pelos filhos e pela sobrevivência, como não era independente tinha que se sujeitar, nem sequer era concebida a ideia de divórcio, isso era impensável.
AGMM: Os casais usavam métodos anticoncepcionais ou não? Porquê?
EGGQC: Acho que não usavam, pois na aldeia a maior parte dos casais tinha 8, 9 ou 10 filhos, e conheci duas senhoras que tiveram 13 e 15 filhos. É claro que não usavam nada, depois estava eminente o “pecado” tinham que aceitar os filhos que Deus lhes quisesse dar, a minha mãe também teve nove.
AGMM: Concorda com essa imposição ou não?
EGGQC: Não concordo, mas naquele tempo pensava-se assim, e tudo era normal ninguém estranhava. Eu acho que devemos pensar que é necessário educá-los, ajudá-los a crescer, ter o mínimo de condições, já não falo em luxos. Pois grande parte da miséria também vinha daí, os casais não tinham possibilidades de sustentar dois e tinham dez, tinha que haver “fome” ou falta de muitos bens.
AGMM: Havia muitos abortos naturais e muita mortalidade infantil. Sabe por quê?
EGGQC: Sim, havia muitos abortos naturais, porque a mulher fazia trabalhos forçados durante a gravidez, alimentava-se muito mal, nunca ia ao médico, falta de assistência.  Na altura do parto, os filhos nasciam em casa, sem condições nenhumas, muitas vezes quando corria mal chegavam a morrer, devido à grande distância e às condições de acessibilidade para o hospital mais próximo.
AGMM: Pertenceu a algum partido ou movimento?
EGGQC: Não pertenci, e na minha família as pessoas eram pacíficas.
AGMM: Sabe com certeza, que vivemos uma Guerra Colonial durante 13 anos, que levou muitos jovens à morte. Conheceu alguém que viveu esse tempo? Quer nos Contar?
EGGQC: O teu pai como sabes esteve na Guerra Colonial no Ultramar em Angola desde 1962 a 1964, esteve em Quilo Pombo sempre no mato. Tenho muitas fotografias, documentos e correspondência que comprovam esse tempo. O pai dizia muitas vezes que nunca conheceu lá uma cama, viviam em barracas construídas por eles. Ele dizia também que havia muita falta de água, e quando chovia punham toldos de plástico e aproveitavam a água das chuvas para cozinhar, beber, fazer a sua higiene, enfim, foram tempos muito duros, lembro ainda que ele falava aquando da viagem para Angola ainda ouviam os gritos das famílias passados três dias. Quando regressou, não gostava de falar desse período da sua vida, dizia que a maior alegria que teve, foi quando entregou a farda.
AGMM: Acha que a guerra era necessária?
EGGQC: Não, a guerra foi um erro, tirou a vida a muitos jovens inocentes. O pai ficou com traumas da guerra e não teve qualquer apoio psicológico do estado, o Salazar obrigou-os a ir sem opção. Só passado muito tempo, é que já aceitava falar de algumas passagens. Era tudo muito mau, falava de alguns amigos que perdeu em combate.
 O pai tem muitas fotografias desse tempo, datadas com várias passagens, tem também um caderno, no qual guarda vários escritos, cartas de amor e a carta à madrinha de guerra, passagens, exercícios de memória, palestras que ouvia na rádio, a contabilidade de todos os meses que lá estivera, ou seja quanto ganhou durante o tempo que esteve na guerra, não chegou a 20 contos, e ainda lhe descontaram uma faca de mato que não entregou, uns dias que esteve doente, enfim… Nem há palavras para descrever aquele tempo.
AGMM: Quando voltou da guerra?
EGGQC: O pai voltou em março de 1964, tens uma fotografia do barco “Vera Cruz”, que tem a data do embarque e até o valor da viagem, “sete contos e quinhentos”.
 No dia em que o teu pai chegou a casa dos pais dele, eu estava lá porque estava a ajudar a tia Laura que casou com um irmão do teu pai, o tio Agostinho, e “recordo-me como se fosse hoje, o teu pai vinha muito moreno, trazia umas calças cinzentas, e lembro-me de abraçar toda a gente que estava por ali, eu ainda não tinha ligação nenhuma com o teu pai, conhecia-o de vista e por ele ser irmão do tio, que mais tarde veio a ser meu cunhado”.
 O sentimento era de muita alegria e tristeza ao mesmo tempo. Estava triste pelos amigos que nunca conseguiram regressar, e ao mesmo tempo estava muito feliz, porque chegara vivo e salvo daquele inferno. Ansioso para abraçar a família de quem tinha muitas saudades. Tinha uma irmã mais nova, a tia Benta, com quem se correspondia todos os dias, tendo centenas de aerogramas, quando chegou, juntaram-se os dois e queimaram tudo, ele dizia que aquelas letras traziam muitas “lágrimas de sangue” e muito sofrimento, queriam esquecer aquele período da sua vida.
AGMM: O que gostaria de dizer sobre esse enorme drama que atingiu Portugal nas décadas de 60 e 70?
EGGQC: Esse drama trouxe muito sofrimento para toda a gente, era muito difícil para as famílias e amigos que ficavam e viam partir os filhos, maridos, amigos para a guerra, na incerteza de os voltar ou não voltá-los a ver.
 Na minha aldeia, foi um rapaz para a Guiné e morreu em combate, o funeral foi acompanhado pelo exército, levava a bandeira a cobrir a urna, e na hora de descer para a cova todos os militares descarregaram as suas armas para o ar, em homenagem àquele amigo que morreu a defender a pátria.
 Outros ficaram com traumas para toda a vida, e muitos ficaram mutilados, sem pernas, nem braços em cadeiras de rodas, foram milhares de jovens que perderam a vida. O teu pai, como pudeste ver com os teus olhos, naquela folha que encontramos no caderno das lembranças, vês lá um série de quadras que transmitem o que ele sentia em 1961, e ele escreveu esse papel em Dezembro de 2005 passados mais de quarenta anos.
AGMM: Como sabe, houve pessoas que migraram, ou seja deslocaram dentro do país para as cidades em busca de novas oportunidades. Quer contar-nos a sua experiência?
EGGQ: Eu e o teu pai tínhamos um objetivo, depois de ganhar algum dinheiro, construir uma casa que ficasse perto da escola e do hospital. Então escolhemos Vila Real, para recomeçar a vida depois de regressarmos de Alemanha. Tentamos instalarmo-nos, tínhamos um quintal que íamos cultivando e criávamos também bovinos. Cá nasceu o meu filho mais novo, o David em 13 de Setembro de 1986, que fez todo o percurso escolar cá em Vila Real, e assim fomos “tenteando a vida”.
AGMM: Viveu alguma catástrofe natural?
EGGQC: Lembro-me quando ainda era jovem, um grande tremor de terra em Lisboa, que fez-se sentir na minha aldeia, ouvia-se “terlintar os copos na cristaleira”, e as areias do telhado a cair.
AGMM: Sofreu alguma experiência traumática?
EGGQC: A pior experiência traumática que vivi, foi quando assisti à última fase da doença de uma irmã e do teu pai “maldito cancro”, durante muito tempo, tive as imagens da minha irmã gravadas na memória, e presentemente ainda sofro com as do teu pai. Foram dias de autêntico sofrimento e a incapacidade de não poder fazer algo para os salvar…!
AGMM: Mãe! Como já disse a morte dessas duas pessoas, marcaram-na muito, mas perdeu mais alguém que também deixou marcas profundas?
EGGQC: Sim, sem dúvida a morte de meu pai, tinha apenas doze anos de idade, ele estava em Lisboa, deixou a aldeia e foi para lá para melhorar a nossa vida. Tinha nove filhos para “criar”. Não era fácil, acabou por falecer com uma pneumonia tinha apenas 42 anos de idade. Era muito novo, eu era pequenina e tinha abaixo de mim, mais 8 irmãos, “foi terrível”.
 A notícia chegou por telegrama, ele estava lá sozinho, nós não tivemos condições económicas para o trazer para cá, ficou lá, a minha mãe foi lá mais o tio Agostinho, irmão de teu pai, era muito nosso amigo, e nessa hora foi um “braço forte” para nós, ajudou a avó tiveram que reconhecer o corpo, não há palavras para descrever esse momento tão trágico nas nossas vidas.
 A maior mágoa que tenho e ainda hoje sinto é relativamente à família do meu pai, eles podiam ter ajudado a trazê-lo para a aldeia, “foram uns fracos”. O meu pai tinha três irmãs e o meu avô, e a nível económico tinham possibilidades, mas não fizeram nada. O tio Agostinho foi um verdadeiro “pai para nós”, foi ele quem ficou responsável por nós, nosso “tutor” e defendeu-nos sempre, somos muito gratos a ele, a minha mãe ficou sozinha com nove filhos, todos menores, “nem é bom pensar como foi a vida a partir daí…”.
 A morte de dois irmãos, que faleceram com “tumores cancerígenos”, eram muito novos, um tinha 45 anos o outro 51 anos de idade. Ambos deixaram filhos menores.
 “A marca mais trágica foi a do teu pai”, que faleceu, como já disse, com um “cancro fulminante”, no espaço de um mês e meio, levou-o à sepultura, acompanhei-o
até ao último minuto, mas é doloroso demais, não conseguirmos fazer nada para salvar a pessoa que amamos, como sabes durante seis dias não o larguei estando com ele dia e noite no hospital. Ele tinha apenas 69 anos, agora estávamos nós a repousar da vida dura e cheia de sofrimento que tivemos. Temos dois netos aquém dávamos toda a tenção, tem sido muito doloroso ultrapassar esta fase, acho que nem vou conseguir….
Comparação com o presente
AGMM: O que lhe parece que mudou?
EGGQC: Tudo mudou, “foi como da noite para o dia”. Com a mudança da ditadura para a democracia, passamos a poder falar aquilo que nos apetecesse e no lugar que quisermos, podemos expressar o nosso direito de voto. Somos livres, direito à igualdade, a mulher conseguir tornar-se independente, ter os mesmos direitos que os homens, não ser tão submissa, poder ser independente, ter um emprego, ter direito a falar.
 Depois do 25 de Abril, melhores salários, melhores empregos. Esta mudança foi muito importante, pois os idosos já têm direito à reforma que tanta falta lhes faz, os abonos da família, para ajudar na educação dos filhos, as bolsas de estudo, os subsídios.  Sem dúvida, os idosos hoje têm melhores condições de vida que tiveram os meus avós, tem direito à saúde, acesso aos medicamentos, tendo assim melhor qualidade de vida. As pessoas ainda se queixam que estamos em crise. A maior crise que sinto nos tempos de agora, é a crise de valores, perderam-se grandes valores morais, o respeito pelos outros, muita gente não olha a meios para atingir os fins, os próprios sentimentos, acho que as pessoas são mais “duras e frias”, pouco tolerantes, indiferentes, o sentimento de entreajuda que havia dantes, hoje perdeu-se totalmente. As pessoas não pensam em poupar, o desemprego é fruto de muitos que não se querem sujeitar a trabalhar, isso é o que penso.

ENTREVISTA
Entrevistadora: Assis Gaspar Machado Monteiro (Filha)
Entrevistada: Emília Gaspar Gonçalves Queirós da Costa (Mãe)
Local da Entrevista: Lugar da Calçada – Adoufe – Vila Real (Domicílio da entrevistadora).
Data da Entrevista: No dia 15 de Maio de 2011.
Duração da Entrevista: Realizou-se desde às 15h até às 23h, com um intervalo de 1h para um lanche ajantarado. Foi um momento bem passado, pois ouvir esta história dos meus pais marcada por momentos bons e maus, tempos difíceis, enfim, passamos à narrativa da entrevista.
Entrevista corrigida por Olinda Santana
18/2/2012

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